GUADALUPE: crença e resistência popular
GUADALUPE
O encontro
entre cultura, história e conjuntura,
como resistência
popular e afirmação de seu projeto histórico
XOCHITLÁLPAN (A
Terra Florida)
Relato Náhuatl da Sierra
Norte de Puebla, México
narrado e interpretado por
Mario Pérez Pérez, de origem náhuatl
O mito
de Xochitlálpan é do povo náhuatl. Náhuatl significa quatro
águas. Nesta narração mítica se mencionam vários elementos. Um elemento é o
ambiente de “flores e cantos”, o qual significa um entorno de sabedoria, de
dignidade, de verdade, de respeito. Outro é o elemento da Palavra Antiga
ensinada pelos mais velhos, que irrompe na história, no caminhar do povo,
representada pelo peregrinar de Juan Diego.
Xochitlálpan, a vida em plenitude, a terra florida, a que se refere esta narração,
localiza-se na parte alta da serra, Tepetzintli, porque em cima
dela se une a humanidade, a “nossa carne”, tonacatzin, com a
divindade, que é o lugar do umbigo que une Deus com seus filhos e filhas.
Para dirigir-se
a Xochitlálpan deve-se peregrinar “até o lugar de onde a Luz
provém”, onde amanhece, chegando até onde surge o Pai Sol. Lá, o povo se
encontra com Tonantzin, “Nossa Digna Mãe”.
Quando alguém
nasce é recebido com flores; quando alguém morre também é acompanhado com
flores; levam-se flores aos mananciais, às serras, às covas, à semeadura. Os
visitantes são recebidos com flores. Quando alguém recebe um cargo é coroado
com flores. As imagens sagradas são adornadas com flores. Tudo isso para viver
a Terra Florida, Xochitlálpan.
Em Xochitlálpan as
pessoas se realizam, tal como aconteceu com Juan Diego, que enalteceu seu
coração, se regozijou e se alegrou. Xochitlálpan é o lugar
utópico da realização da criação: os seres viventes, as pedras, as palavras, os
pássaros. Lá, tudo se torna precioso, formoso, reluzente, verdadeiro, bom,
abundante, vivificante.
Havia um
pequeno
homem
pobrezinho,
o seu nome era
Juan Diego.
Falava-se que
tinha a sua casa em Quauhtitlán.
E no que se
refere às coisas divinas,
tudo ainda pertencia
a Tlatelolco.
Era sábado,
ainda muito
cedo, pela manhã,
ia atrás das
coisas divinas
e de tudo o
que tinha sido ordenado, pedido.
E foi se
aproximando do pequeno morro,
de nome
Tepeyácac,
já quase
reluzia a aurora na terra.
Aí escutou
cânticos sobre o pequeno morro,
eram que nem
cânticos de várias aves preciosas.
Quando
interrompiam as suas vozes,
parecia que o
pequeno morro respondia.
Muito leves e
gostosos,os seus cantos ganhavam do pássaro
coyoltototl,do
tzinitzcan e de outras aves preciosas que cantam.
Juan Diego
parou
e falou para
sim mesmo:.
Por acaso
mereço
o que estou
escutando?
Estou talvez,
somente, sonhando,
ou estou
acordando agora?
Onde é que eu
estou?
Onde eu me
vejo?
Talvez lá no
lugar
onde falavam
os nossos anciões,
os nossos
antepassados, os nossos avós,
na terra
florida, Xochitlálpan,
na terra do
nosso sustento. Tonacatlapan, talvez
na terra
celestial, Ilhuicatlapan?
Ficou olhando
para lá,
para o alto do
pequeno morro,
para onde o
sol nasce,
de onde vinha
o precioso
canto
celestial.
Parou o canto,
não se
escutava mais.
Então ouviu
que alguém o
chamava
desde o alto
do pequeno morro.
Falavam para
ele: Juan Diegotzin.
Então ele
tomou coragem
e foi para lá
onde era
chamado.
Nada inquietou
o seu coração,
e nem se
alterou,
mas muito se
alegrou,
ficou feliz.
Foi subido o
pequeno morro,
foi ver quem o
chamava.
E quando lá
chegou
no cimo do
pequeno morro,
viu uma nobre
senhora
que lá estava
em pé.
Ela o chamou
para ficar ao
seu lado.
E quando ele
se aproximou,
ficou muito
maravilhado
porque
ultrapassava
toda admirável
perfeição.
O vestido dela
resplandecia
como o sol,
desse jeito
brilhava.
E das pedras e
rochas
sobre a qual
ela estava
saíam raios de
esplendor
como pedras
preciosas de jade
e como jóias
reluziam.
Como os
reflexos do arco íris
a terra se
vestia.
E os
mezquites, os nopales
e as outras
plantas e ervas
que aí
crescem,
pareciam
plumagem do quetzal,
e as suas
folhas pareciam turquesas,
e o seu
tronco, seus espinhos,
reluziam como
o ouro.
A cosmovisão
indígena tem como base a religião. Esta é fruto da história de cada povo.
Alfonso Caso, grande conhecedor do passado histórico dos povos do México,
afirma que: “A existência (dos antigos) girava totalmente ao redor da
religião e não havia um só ato da vida pública e privada que não tivesse um
sentido religioso. A religião era o fator preponderante, e intervinha como
causa até nas atividades que nos parecem mais afastadas do sentimento
religioso, como os esportes, os jogos e a guerra.”
Esta visão
religiosa antiga nos faz ver a terra com veneração, a esta chamamos, com amor e
com respeito “Nossa Mãe”, isto é, Tonana, porém da maneira mais digna a
pronunciamos como Tonantzin, “Nossa Venerável Mãe”.
A dona da
terra é Teocoatlaxiupe: “Teo” é Teotzin = Dios; coa, é coatl = serpente; tla é
Tlali = terra; xiu, é xihuitl = ano solar; pe = começo. Estes cinco elementos
são, sem sombra de dúvida, uma alusão ao Quinto Sol, também a Macuilxóchitl
(cinco-flores).
Através disso
Xochitlálpan está íntimamente vinculada a Tonantzin Teocoatlaxiupe. A expressão
da religião dos povos indígenas tem sua formulação mais acabada em Tonantzin
Teocoatlaxiupe, de forma que não se compreende a História dos povos mexicanos
sem ela, sem Tonanzin Guadalupe.
Porém o
fenômeno Guadalupense não se limita ao âmbito puramente religioso, mas afeta
toda a vida. O fenômeno Guadalupense é um lugar de encontro, de comunhão na fé,
de consolo, de esperança, de reflexão e mobilização coletiva. A Guadalupana
está em todas as partes, não só nos altares. Está nas fábricas, e os
operários a invocam e confiam a ela os trabalhos. Está nas casas e nas
esperanças das famílias. Está presente entre os intelectuais que inspirando-se
nela produziram algumas das melhores páginas dos nossos escritores como
Fray Servando, Clavijero, Francisco de la Maza, Edmundo O’Gorman e
Octavio Paz.
Naturalmente
está na própria origem da Igreja Mexicana e da força cultural e política que a
caracteriza.
“O fenômeno
guadalupano é parte viva do nosso universo psicológico e social, de nossos
mitos coletivos e da nossa dimensão nacional. Mesmo os que não somos religiosos
somos condicionados por esta mentalidade. Eu não tenho fé porém, racionalmente,
tenho que reconhecer que o processo de construção do mito guadalupano é
deslumbrante por sua complexidade e riqueza: é um verdadeiro milagre da
imaginação coletiva e das necessidades espirituais do País. Sou um guadalupano
laico, por assim dizer” afirma Aguilar Camín.
A Virgem de
Guadalupe, como símbolo de esperança e de libertação tem um lugar preponderante
na memória do povo. Ainda, ela está repleta de símbolos que afirmam nossa
identidade como povo mexicano, nela, no discurso guadalupano, recuperamos o
orgulho de ser índios. O poder de unificação é fundamental. Novamente, o
elemento religioso tem relevância.
Construiremos
e reconstruiremos nossa história nutrindo-nos em nossa cosmovisão religiosa.
Deste modo a Virgem de Guadalupe, desde sua aparição em Tepeyac (1531), para
converter-se em protetora e “piedosa Mãe” dos índios, em Zinacatán, Chiapas
(1709 – 1710), também em Santa Martha e San Pedro Chenalhó, a Virgem
desce do céu para aliviar as condições desamparadas dos índios; em Cancuc, em
Chiapas (1712 – 1713), a aparição da Virgem é interpretada por Sebastián Gómez
de la Gloria como o fim do tributo, das autoridades dos sacerdotes e do Rei da
Espanha, e como augúrio de uma época na qual os índios gozarão de sua antiga
liberdade; em Quisteil, Iucatã, (1761), a coroação de Jacinto Canek proclama o
desaparecimento do poder espanhol e a criação de um reino indígena; o movimento
milenarista tendo à frente Antonio Pérez, numa região situada nas ribanceiras
do Popocatépetl e o Valle de Cuernavaca (1761), anuncia uma nova repartição da
riqueza do mundo, o fim do domínio espanhol e uma era em que todos os bens
voltarão ao poder dos nativos. E, recentemente, em 1994, se disse no México
que, com a irrupção do E.Z.L.N., voltou a aparecer em nossa historia Juan
Diego; porém Juan Diego nunca está sozinho mas sempre acompanhado de Tonantzin
Teocoatlaxiupe.
Em todos estes
casos a revolta social adota formas da expressão religiosa, porém em lugar de
propor a felicidade no céu, propõe a transformação do mundo, convida a mudar as
condições políticas e sociais existentes. As crenças, os valores e os símbolos
que se manifestam nestes movimentos são religiosos, porém os fins e aspirações
que os motivam estão baseados no desejo de uma mudança da realidade.
O fato mais
importante da independência de 1810 é o nome carismático da Virgem de Guadalupe
invocado na Paróquia de Dolores no momento em que Hidalgo decide combater com
as armas, o governo espanhol. Depois de passar pela Paróquia de Atotonilco,
Hidalgo toma a imagem da Virgem de Guadalupe que ali se venerava e a converte
na bandeira dos insurgidos.
Todos,
seguindo a tradição de fazer da Guadalupana um símbolo que muda as aspirações
particulares de seus devotos, transformaram também a Virgem de Guadalupe numa
Virgem combatente.
Por isso, não
consideramos nossa religião como alienante, mas como o fundamento para a
transformação da realidade.
ORAÇÃO DA VIRGEM DE GUADALUPE
Mãe, tu que trouxeste ao
mundo o nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus Pai todo poderoso.
Ajudai-nos na nossa luta
cotidiana
contra a crise social,
econômica e moral que hoje suportamos.
Guia-nos nestes caminhos
onde é difícil caminhar,
Que as tuas pegadas nos
levem à divindade do teu filho
E do Nosso Pai Celestial.
Acompanha-nos com o teu
olhar para podermos continuar
recuperando em cada passo
a essência do nosso povo que não tem fim.
Dai-nos força em cada
instante porque nós, os teus filhos,
somos simples na alma e na
ida e somos da tua mesma cor.
Abençoa-nos como o fizeste
sempre,
desde que te tornaste a
Nossa Mãe,
e gravada sobre um manto
ficaste na nossa Terra.
Sentimos o teu perfume na
brisa da manhã,
nas flores que renascem,
nos tesouros que ainda
ficam
escondidos no teu manto e
que ninguém ainda descobriu.
Hoje queremos e
necessitamos da tua bondade e do teu amor.
E a nossa identidade seja
sempre uma árvore,
Ainda que sejam galhos
curtos mas com uma forte raiz.
Mãe, somos os teus povos,
somos a tua gente,
somos os teus filhos que
caminham sob a tua proteção.
Reforça a nossa “União”
para manter viva a nossa cultura e identidade.
Alimenta o nosso espírito
para sermos corajosos e fortes.
E defendamos o que é
nosso, porém com humildade.
Mãe Nossa de Guadalupe,
nunca abandones os teus filhos,
pois na tua luz reflete a
esperança que precisamos cada dia,
que vem do teu Filho Jesus
Cristo e Nosso Senhor,
que vive e reina pelos
séculos dos séculos.
AMÉM.
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