O batismo de Jesus (Mateus 3,13-17)
Marcelo
Barros, monge beneditino e assessor do CEBI, segue seu diálogo com a comunidade
que nos deixou como herança o evangelho de Mateus. Na carta de hoje ele
conversa sobre o significado do Batismo de Jesus.
(extraído de Conversa com Mateus – no prelo. Do mesmo autor, conheça: O Espírito vem pelas águas)
Irmãos e irmãs da esperançosa comunidade de Mateus,
Talvez, no início, o relato de vocês começava pelo capítulo 3.
“Naqueles dias…”. Isso parece com o nosso “era uma vez”, mas situando os
acontecimentos, não em uma história de fadas e sim na história real. Muitas
profecias bíblicas contêm essa frase: “Naqueles dias…” (Cf. Amós 5,18-20;
Oseias 6,1-3; 9,7-9; Miqueias 4,6-7; Jeremias 4,9-12, etc.). Referem-se todas
ao que os profetas chamavam “O Dia do Senhor”, ou o dia em que o Senhor virá
instaurar o seu Reino.
Mesmo depois de familiarizado com o texto de vocês, ainda me
surpreendo com o fato do Evangelho dizer assim tão claro que o reinado divino
se manifesta não no centro da cidade, onde se expressam os reinos do mundo, mas
no deserto e a partir de pessoas marginalizadas e excluídas da sociedade.
O centro desses dois capítulos (Mateus 3 e 4) é o relato do
batismo (“e eis que…”). Esta cena é colocada antes de duas passagens opostas: o
encontro de Jesus com João Batista (Mateus 3,5-15) e o desencontro com o
diabo (Mateus 4,1-11). Depois, a narrativa resume toda a atividade
seguinte de Jesus: ele chama e reúne discípulos, ensina nas sinagogas e cura
toda doença e pecado (Mateus 4,18-25).
2. João Batista, o primeiro evangelista do Reino
Ao reler o testemunho do evangelho de Mateus sobre o profeta João,
penso que uma realidade que estava por trás do relato de vocês é a presença de
discípulos de João Batista nas comunidades da época do evangelho, ou na sua
vizinhança. Vocês sentem a necessidade de lembrar que João foi profeta do
Reino, assim como o profeta da consolação (o 2o Isaías; Is 40-55) que anunciou a volta do povo do cativeiro
da Babilônia, e o grande profeta Elias ( ele se veste tal qual Elias – 1 Reis
1,8). Muitos judeus esperavam a volta de Elias como o profeta que antecederia a
vinda do Messias. O evangelho coloca na boca de João o testemunho sobre Jesus de
modo que ele mesmo esclareça que há uma grande semelhança entre os dois (João e
Jesus), mas há uma diferença fundamental: “Eu batizo com água. Quem virá atrás
de mim (como aquele que me segue, isto é, como discípulo) passa na minha
frente” (Mateus 3,11).
João é apresentado como profeta enviado a pregar (kerissein). Sua missão se realiza no
deserto da Judeia, distante dos centros sociais e políticos. Ele anuncia que o
reinado (basileia) divino está
perto ou próximo (engiken). Há uma dimensão de proximidade
no tempo e no espaço (Mateus 3,2).
(...)
Jesus foi discípulo de João e recebeu dele a formação de profeta.
João retoma a figura dos grandes profetas do povo. A ele vêm as autoridades
religiosas e sociais de Israel (no tempo de vocês, os saduceus perderam o poder
para os fariseus). Será que, contando a atuação do Batista no deserto assim
próximo ao Jordão, vocês queriam mostrá-lo, de algum modo, ligado ao movimento
dos essênios, a comunidade de sacerdotes e monges que, no deserto (Qunram)
viviam um judaísmo mais radical e alternativo, contra o templo e os sacerdotes
de Jerusalém?
Foi pelo rio Jordão que, segundo a Bíblia, os hebreus entraram na
terra prometida (Josué 3,14-17). Então, o Jordão tem uma dimensão simbólica na
história de Israel. Pelo batismo, era como se passasse de um império do mal (de
Roma) ao reinado divino. O banho por mergulho (batismo) era comum entre os
essênios e algumas correntes de judaísmo como um rito de purificação e de
esperança num renascimento espiritual e social. Um tratado judaico (mishna) diz: “Se o banho por imersão
(batismo) purifica os impuros, então, o Santo purifica Israel”. A palavra usada
para significar “banho” (miqweh)
tem duplo sentido: "banho e esperança”.
Daí que o batismo de João podia ter um sentido de anúncio do Reino futuro.
3. O Reino de Deus se aproxima em Jesus no batismo
O relato faz Jesus vir da Galileia para receber o batismo. Como isso poderia ser interpretado
como uma dependência de Jesus com relação a João, vocês incluíram um diálogo
entre João e Jesus: “Sou eu que preciso ser batizado por ti e tu vens a mim?”
Jesus responde: - “Deixa
que se cumpra toda a justiça”. A ação divina passa pela etapa da ação de João
para chegar a Jesus. Mais tarde, as autoridades judaicas de Jerusalém viram que
ele ensinava no templo e lhe perguntaram: “Que autoridade você tem para fazer
isso? (quer dizer: para agir como os antigos profetas que ensinavam na porta do
templo). “Quem lhe deu essa autoridade?” (ou “quem fez de você um profeta?”)
Jesus respondeu: “Vou lhes fazer uma pergunta. Se me responderem, poderei lhes
dizer com que autoridade eu faço isso.
Quando João batizava, isso vinha de Deus, ou dos homens?”. Eles
não quiseram responder e Jesus lhes respondeu: - “Então, eu não tenho como lhes
explicar com que autoridade faço isso” (Cf. Mateus 21,23-27). Assim, Jesus
esclarecia definitivamente que sua autoridade profética vinha do batismo de
João. No Jordão, Jesus foi investido da missão profética e o próprio Pai o
designa como o verdadeiro Messias que preenche a expectativa do povo. Se as
pessoas não reconheciam a legitimidade desse batismo, não podiam reconhecer a
missão de Jesus.
Quando Jesus foi batizado, “os céus se abriram”. Na época, havia
uma forte consciência de que, depois da volta do cativeiro, por causa do fato
de que Israel rompeu a aliança com o Senhor, “os céus se fecharam”. Deus
guardava silêncio. Quando muito, podia-se apenas ouvir o eco da sua voz, mas
não escutar a sua Palavra através dos profetas. “Não vemos mais sinais de tua
presença, não há mais profetas e ninguém sabe até quando” (Salmo 74,9. Cf.
também 1 Macabeus 14,41-46). Os profetas prometiam o tempo novo e maravilhoso
no qual os céus se abrissem (Cf. Isaías 64,1; Ezequiel 1,1).
Muita gente estranha essa questão de representar o Espírito de Deus
como uma pomba. Na tradição bíblica, a pomba é a imagem de Israel, a esposa do
Cântico dos Cânticos (Cf. Cântico 2,14; 1,15 e outros). O que o Evangelho diz é
que o Espírito desceu sobre Jesus suavemente, como uma pomba. Como o Gênesis
dizia que “o Espírito pairava sobre as águas”. Mas, à medida que as comunidades
interpretaram que o Espírito desceu em forma de pomba, para nós, hoje, é bom
escutar esta interpretação que o Espírito vem na forma de Israel, isto é
através da comunidade.
Poucas vezes, na Bíblia, Deus fala diretamente. Em geral, ele fala
pelos profetas e profetisas. Aqui a voz divina identifica Jesus: “Este é o meu
filho, o amado, em quem ponho minha afeição”. Esta palavra alude à profecia do
Servo Sofredor (Isaías 42,1-5). O servo (pais)
de Isaías se torna aqui (huios mou) meu filho. O ekkletos (escolhido) de Isaías se torna agapetos (amado) no texto de
Mateus. Há quem visse no “filho amado” uma referência à passagem de Abraão
levando Isaac, seu único filho, para o sacrifício (Gênesis 22). Por mais que
esta passagem não seja histórica e possa ser questionada sobre a imagem de Deus
que nos dá, ela foi, em toda a tradição judaica, usada como profecia do
Messias. O batismo de Jesus reinicia uma nova época profética e de manifestação
da presença do Senhor junto ao seu povo.
Marcelo Barros
Sugestão de canto: http://www.youtube.com/watch?v=nUr4jRucEcY