Santa Rosa de Viterbo e o jufrista de nossos dias
Santa Rosa foi designada
padroeira da Jufra por pertencer à Ordem Franciscana Secular e por ser uma
jovem, que ao morrer tinha apenas 17 anos. Entretanto o contexto histórico e
cultural no qual viveu Santa Rosa é muito diferente do contexto atual. A
biografia de Santa Rosa nos diz que ela nutria o profundo desejo de tornar-se
monja. Fez duas tentativas de entrar no mosteiro das clarissas, sendo recusada
nas duas. Sem pretender discutir a natureza pessoal da sua vocação, deve-se
colocar o fato no contexto mental onde ele ocorreu: na Europa da Idade Média.
Naquele tempo, o modelo de perfeição cristã era o modelo
monástico. Essa idéia foi uma construção cultural de vários séculos. A partir
do século IV o movimento monástico destaca o ideal da “Fuga Mundi”, fuga
do mundo entendido naquele contexto como caos moral. Alimentaram uma espiritualidade
de desprezo do mundo como desprezo do mal, do pecado, da corrupção, da
velhacaria que encontrava na cidade, mas também dentro de nós. O mundo do final
do império romano era interpretado como uma sociedade em decadência, e a perfeição
Cristã só poderia ser obtida separando-se da corrupção da sociedade. Cria-se
assim uma oposição antitética “religioso” versus “secular”. Em outras palavras,
naquele ambiente cultural toda pessoa que cultivava o desejo da perfeição cristã
buscava o modelo religioso.
Mesmo São Francisco, tão original em relação ao seu
tempo, se expressa com o vocabulário de sua época. Embora tenha deixado claro
que não desejava o modelo monástico no ato da recusa à Regra de São Bento em
favor do seguimento do Evangelho liberto de todas as restrições institucionais,
ele define, no seu testamento, sua conversão com a expressão “deixei o século”.
No seu ambiente, o século era compreendido como o “lugar de oposição a Deus” em
contraposição àqueles que vivem a penitência. O Mundo é o lugar onde se
praticam os vícios onde se praticam as concupiscências carnais, a vaidade, a
ganância etc. Por isso a Ordem Franciscana Secular foi inicialmente denominada “Ordem
da Penitência”, posteriormente Ordem Terceira Franciscana e somente após o Concílio
Vaticano II ganhamos a atual designação.
Digo isso, não como uma crítica ao passado, na medida em que
cada geração de cristãos tem seus próprios desafios para viver o evangelho no
seu tempo, mas para mostrar que o contexto histórico e cultural tornava muito
difícil pensar a vocação secular como algo positivo. A posição do leigo e do
secular na Igreja era vista do ponto de vista da insuficiência e da subordinação.
A palavra leigo era usada para
diferenciar o povo em sua maioria iletrado que não tinha acesso à Bíblia e
tampouco à escrita. Assim, em traduções latinas e nos sinônimos empregados para
expressar o significado de laikós (do grego), aparecem as palavras:
"idiota", "iletrado", "secular",
"plebe". De maneira geral o termo se aplica ao conjunto da população
num contexto que todo o saber se expressava numa linguagem teológica e/ou filosófica
e dependia do conhecimento do latim. Em outras palavras o povo que deveria ser
conduzido pelos sacerdotes e religiosos que detinham o conhecimento das sagradas
escrituras e dos escritos filosóficos.
Entretanto, algo acontece com o desenvolvimento da
sociedade moderna. Do ponto de vista político, a ideia de democracia supera a
monarquia absoluta teocrática do passado, o surgimento da ciência moderna
desloca a filosofia e a teologia do centro do conhecimento do mundo e, como
consequência, vai se instituindo uma sociedade na qual a pluralidade substitui
as rígidas hierarquias do passado. Durante os séculos em que essas transformações
se operavam, a instituição eclesiástica resistiu muito. Muitos padres e teólogos
pensavam que as formas de organizar o mundo moderno negavam Deus e não apenas
ao papel institucional da igreja na sociedade. Até meados do século XX o
conhecimento teológico se dedicou à reafirmação da autoridade da Igreja
apresentando-a como “sociedade perfeita” fora da qual não há salvação. Uma
organização hierárquica onde se reafirma a velha ordem. Leigos e seculares são
o rebanho a ser conduzido e pastoreado pela hierarquia.
Vale a pena ressaltar que estamos tentando sintetizar um
longo e complexo processo. Para isso fizemos algumas simplificações que
deveriam, numa boa narrativa histórica, ser observadas mais detalhadamente.
Entretanto parece que estas observações gerais correspondem ao processo histórico
concreto da igreja enquanto instituição que foi, ao longo do tempo,
incorporando elementos culturais históricos às suas formas organizacionais.
Ao longo do século XX diversos movimentos dentro da
Igreja elaboram uma releitura do Evangelho buscando uma aproximação com o mundo
moderno. Essas novas formas de pensar a igreja conseguem se expressar no Concílio
Vaticano II. Entre outras definições, o concílio pretendeu superar a distância
entre povo e clero, designando, na Constituição Dogmática Lumen Gentium, que
leigos seriam o Povo de Deus. Note-se o esforço de superar, nesta definição,
uma organização hierárquica que estabeleça superiores e inferiores, mas papéis
distintos ou formas diferentes de viver o seguimento de Cristo. Para promover
uma reaproximação com a sociedade moderna o concílio propõe um “retorno às
fontes”, isto é, um retorno à essência do cristianismo num esforço de se
libertar daqueles acréscimos históricos, compreensíveis no seu tempo, mas que
ofuscavam a mensagem original de Cristo e de Francisco. Neste contexto histórico
é que foi possível reinterpretar o papel do cristão leigo, secular, como uma
forma específica de seguimento de Jesus sem tentar hierarquizar esta forma como
superior ou inferior ao papel religioso ou sacerdotal.
Mas em que consiste a especificidade da vocação
franciscana secular? No aspecto mais geral a nossa vocação está expressa no
primeiro item do capítulo II da nossa Regra: “observar o Evangelho de Jesus
Cristo segundo o exemplo de São Francisco de Assis, que fez do Cristo o
inspirador e o centro da sua vida com Deus e com os homens”. E é justamente
buscando as fontes evangélicas e observando a vida de Jesus que percebemos que
Jesus não busca se afastar do mundo e se refugiar numa ilha de perfeição (ou
busca da perfeição). Pelo contrário, deixa sua condição divina e se ENCARNA,
assume o mundo plenamente, com a morte, com a dor, com os limites da condição
humana. Ele ama o mundo e vai ao seu encontro para redimi-lo com seu amor.
Na sua trajetória no mundo ele não se coloca entre reis e
nobres, mas se aproxima do povo simples. Na sua pregação apresenta a boa nova
em uma linguagem simples, próxima do povo. Suas parábolas falam da realidade
cotidiana (as flores do campo, a atividade do pescador, o vinhedo) e apresentam
um Deus próximo e acolhedor. Ele se afasta das regras de pureza e apresenta o
amor como o valor supremo, maior inclusive do que as normas firmemente
estabelecidas no seu tempo, como o repouso sabático (Mc 3,1-6) “Outra vez
entrou numa sinagoga, e estava ali um homem que tinha uma das mãos atrofiada. E
observavam-no para ver se no sábado curaria o homem, a fim de o acusarem. E
disse Jesus ao homem que tinha a mão atrofiada: Levanta-te e vem para o meio.
Então lhes perguntou: É lícito no sábado fazer bem, ou fazer mal? Salvar a vida
ou matar? Eles, porém, se calaram. E olhando em redor para eles com indignação,
condoendo-se da dureza dos seus corações, disse ao homem: Estende a tua mão.
Ele estendeu, e lhe foi restabelecida”. Em outra passagem ele reafirma a
prevalência do amor e da amizade inclusive sobre o rito sacrifical no Templo:
(Mt 5,21-24) “Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e, quem matar
será réu de juízo. Eu, porém, vos digo que todo aquele que se encolerizar
contra seu irmão, será réu de juízo; e quem disser a seu irmão: Raca, será réu
diante do sinédrio; e quem lhe disser: Tolo, será réu do fogo do inferno.
Portanto, se estiveres apresentando a tua oferta no altar, e aí te lembrares de
que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua
oferta, e vai conciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem apresentar a
tua oferta”.
Jesus percebe com clareza que a ênfase na norma nos
afasta das pessoas. Ele opta, portanto, por se aproximar justamente da parcela
marginalizada da sociedade. Ele não vem para julgar e condenar, mas para
resgatar com seu amor. Isso fica claro em Mc 2,15-17: “Ora, estando Jesus à
mesa em casa de Levi, estavam também ali reclinados com ele e seus discípulos
muitos publicanos e pecadores; pois eram em grande número e o seguiam. Vendo os
escribas dos fariseus que comia com os publicanos e pecadores, perguntavam aos
discípulos: Por que é que ele come com os publicanos e pecadores? Jesus, porém,
ouvindo isso, disse-lhes: Não necessitam de médico os sãos, mas sim os enfermos;
eu não vim chamar justos, mas pecadores”
Numa sociedade marcada por uma cultura patriarcal na qual
as mulheres tinham muito pouco espaço, Ele admite mulheres entre seus
seguidores como se pode observar em Lc 8, 1-3:
“Logo depois disso, andava Jesus de cidade em cidade, e de aldeia em
aldeia, pregando e anunciando o evangelho do reino de Deus; e iam com ele os
doze, bem como algumas mulheres que
haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada
Madalena, da qual tinham saído sete demônios. Joana, mulher de Cuza, procurador
de Herodes, Susana, e muitas outras que os serviam com os seus bens”.
Ao se aproximar dos desclassificados do seu tempo ao
mesmo tempo ele critica os preconceitos da sociedade na qual ele viveu e a
apresenta uma manifesta esperança na construção de um Reino que supere todas as
formas de segregação.
Essas passagens deixam claro o amor que Jesus dedica ao
mundo e sua preferência pelos marginalizados. O exemplo de Jesus é o elemento central
na vocação franciscana secular. Se não podemos fugir da nossa condição de viver
numa sociedade, num determinado tempo e lugar, estar no mundo seguindo o
exemplo de Cristo é a nossa vocação. A oração e a Eucaristia devem estar no
centro da nossa vida, são os momentos nos quais podemos recarregar nossas
energias na graça do Senhor. A plena realização de nossa vocação franciscana se
dá no mundo do trabalho, da ciência e da cultura, das artes, da política, da
família, etc. Nesses lugares estaremos seguindo o Evangelho quando promovemos a
paz, quando somos capazes de amar o próximo até as últimas consequências e
quando tomamos definitivamente o partido dos mais pobres e marginalizados.
Santa Rosa de Viterbo foi, certamente, uma pessoa fantástica,
inspirada, como era a cultura do seu tempo, num modelo de piedade monástico. A
releitura do Evangelho promovida pelo Concílio Vaticano II nos permitiu
descobrir a beleza da vocação secular e do papel que temos a realizar no mundo
contemporâneo.
Edson Armando Silva - OFS
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