Frei Wagner José da Rosa, OFM[1]

“Uma ecologia integral requer abertura
para as categorias que transcendem a
a linguagem das ciências exatas ou da
biologia e nos põem em contato com a
essência do ser humano”. LS 11[2]

 I.     INTRODUÇÃO

     “É de pouquinho” e “comecemos pequenos” são duas expressões que para mim tem muita força simbólica. Em primeiro lugar porque quem as dizia, e era corriqueiro dela escutar, foi uma grande amiga que partiu de forma inesperada - Irmã Lucinda Moretti. Uma religiosa da Congregação das Irmãs de São José de Chamberry que doou sua vida pelo Reino de Deus.
Oriunda de uma família de agricultores familiares do sul do país, Irmã Lucinda, depois de adulta e de ter ajudado sua família a vencer a perda da matriarca, decide cumprir sua vocação de religiosa. Terminou a sua alfabetização na congregação e parte para a vida missionária. Foi para o Mato Grosso do Sul - MS e depois Rondônia e voltou para o MS.
Bem, porque falar de uma religiosa em um texto que quer falar sobre a CF (Campanha da Fraternidade) deste ano?
Simples! Pois quando falamos de biomas, falamos de vida. E vida não somente a mineral, vegetal ou animal como normalmente compomos um bioma em nosso imaginário. Mas falamos de também de nossa vida que é cultivada dentro dessa realidade natural que nos cerca. Somos moldados pela natureza em sua constituição.
Seguiremos nosso texto buscando compreender um pouco de como a Igreja vai adquirindo essa linguagem da questão ambiental e como se torna cada vez mais recorrente falar dela. Depois passaremos para o que de fato é um bioma e então concluiremos nosso “papo” tentando unir todos esses pontos que parecem soltos.

         II.     UM POUCO DAS CAMPANHAS DA FRATERNIDADE

     Nos anos 1970 a Igreja no Brasil começa a “despertar” para essa consciência necessária para com o meio ambiente. E assim várias campanhas da fraternidade irão desenvolver esse tema de forma direta ou indireta como veremos a seguir.
     Podemos perceber que em 1979, o tema da Campanha da Fraternidade foi: “Por um mundo mais humano”, e o lema: “Preserve o que é de todos”. Em 1984: “Fraternidade e Vida” com o lema: “Para que todos tenham vida” e em 1986: “Fraternidade e Terra”, e o lema: “Terra de Deus, Terra de irmãos”.
Entendo o tema da vida como sendo abrangente e conclamando para si toda a criação, por isso vida também para a natureza. Temas esses que não têm uma relação direta com o meio ambiente, mas que são sinais de uma Igreja profética em plena ditadura militar e que conclama a viver uma sociedade mais humana, plena de vida. Contudo, ainda não têm o apelo que veremos nas décadas posteriores.
     Na década de 1990, no período pós Constituição Federal de 1988, onde o país “dá os primeiros passos” para a democracia que renasce e os temas são voltados para o artigo 6º da Constituição: moradia, trabalhos, educação, dignidade; e para os excluídos e as excluídas de nossa sociedade, como: mulheres, jovens e negros.
     No ano de 2002 a Campanha da Fraternidade chama a atenção para a Fraternidade e Povos Indígenas com o belo lema “Por uma terra sem males”. Para falar de povos indígenas é necessário fazer um recorte no processo de destruição ambiental e da ganância de exploração dos recursos naturais deslocando os povos tradicionais de suas áreas com a prerrogativa de abertura das fronteiras agrícolas. Falácia mentirosa de aumento da produção para poder alimentar as pessoas. O que de fato está em jogo é o poder capital de posse da terra, de dominação e de produzir riquezas à custa da miséria de outros.
     Nesse contexto, gostaria de lembrar um texto mais atual do Papa Francisco. A Laudato Sí, 146 afirma que: “as comunidades aborígenes com as suas tradições culturais [...] quando permanecem em seus territórios, são quem melhor os cuida”. E continua denunciando:
Em várias partes do mundo, porém, são objetos de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativistas e agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura (LS 146).

Nesta virada do milênio muito se falou sobre a questão da água, elemento fundamental para a vida e que mereceu em 2004 uma Campanha da Fraternidade com o tema: “Fraternidade e Água e o lema: Água, fonte de Vida”. Trabalhou-se muito nas comunidades sobre esse assunto.
No ano de 2007, o tema abrange desde a preservação à necessidade de atenção para a vida da Igreja na região da Amazônia, para com os povos que ali vive e para a vida missionária. Sendo o tema: “Fraternidade e Amazônia” e o lema: “Vida e Missão neste chão”.
Princípio da vida, início de tudo é o processo gerador do Deus da Vida, que tudo cria e percebe sua beleza. Contudo a beleza da criação se vê ameaçada de várias formas e emerge a necessidade de falar a esse respeito. E em 2011 o tema desenvolvido foi a Fraternidade e a Vida no Planeta com o lema: “A criação geme em dores de parto” (Rm 8,22). Um novo olhar sobre a criação é preciso, uma nova forma de ser e viver deve ser desenvolvida. Sem perceber que estamos destruindo a criação o homem corre o risco de se autodestruir.
Casa Comum, Nossa Responsabilidade foi o tema que acabamos de discutir no ano de 2016 e que teve o lema: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” (Am 5,24). A tomada da responsabilidade sobre aquilo que deveríamos cuidar e de modo especial a questão do saneamento básico, fonte primeira dos grandes problemas de saúde que terminam nas grandes filas dos postos de saúde e hospitais de nossas cidades é de responsabilidade de cada um, mas também dever do estado. O ano para essa reflexão se findou e podemos nos perguntar: O que fiz pela casa comum nesse ano de 2016?
Depois de uma breve trajetória sobre os temas e lemas das Campanhas das Fraternidades que direta ou indiretamente fazem menção às questões do cuidado com a vida do homem e da natureza, chegamos ao tema deste ano que de fato tem muita relação com a vida de muitos povos e da natureza. Trata-se de um processo que visa entender como se dá as relações de reciprocidade entre o homem e a natureza, entre os seres criados, os seres animados e inanimados é na certeza de que “Deus viu que tudo era bom” (Gn 1,31).
Em 2017 o tema é Fraternidade: Biomas brasileiros e defesa da vida e o lema: “Cultivar e guardar a criação” (Gn 2,15). Agora conversaremos um pouco sobre esse tema e lema que muito me encantou pela sua possibilidade de desenvolver uma teologia da criação a partir da realidade concreta de cada povo e também da nossa responsabilidade para com o meio ambiente.

III. BIOMA
     Quando falamos de bioma, e de forma bem simples podemos dizer que é o resultado da conformação da vivência entre seres vivos e seres inanimados em um determinado espaço territorial, dizemos de um modo de ser da natureza em determinados lugares e incluindo aqui os seres humanos com seu modo de viver em cada bioma do nosso planeta.
     O Papa Francisco na Laudato Si, 139 nos recorda que:
Quando falamos de ‘meio ambiente’, fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isso impede-nos de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos.
     Muitas Campanhas da Fraternidade já tiveram um “olhar” para a natureza, para o meio ambiente. Esses temas, porém, emergem nas Campanhas da Fraternidade assim como quando os mesmos ganham maior importância na sociedade. É de forma gradual que podemos perceber essa atenção da Igreja para essas questões, acompanhando a sociedade brasileira e mundial nessa grande necessidade de se pensar o seu jeito de estar no mundo.
Não quero fazer um tratado teórico da necessidade que vivemos do cuidado com o meio ambiente, mas de perceber como a estratégia de sobrevivência de nós, seres humanos, e da criação como um todo se molda e modifica. Como ela precisa de cuidado e atenção de todos nós.
Vários especialistas, em diversas áreas do conhecimento, têm escrito sobre o impacto que estamos causando no meio ambiente, acelerando os processos de mudanças que de maneira natural levariam milhares de anos. Também na área da teologia surgem pesquisadores como Leonardo Boff, Marcelo Barros, Afonso Murad, dentre outros que começam a ter um olhar mais carinhoso para com a criação e iniciam um processo de construção de uma ecoteologia. Fazendo uma teologia que perpassa toda a criação.

IV. UM POUCO DA PRÁTICA

     Iniciamos esse texto falando de Irmã Lucinda que viveu em pelo menos três biomas e no último, o Cerrado, depois de seus 60 anos de vida aprendeu a amar o que ele é: belo, produtivo, forte e necessário. Quando fiquei sabendo que esta CF teria essa temática foi inevitável não pensar em sua dedicação ao Cerrado.
Assim como os teólogos atualmente estão buscando desenvolver a ecoteologia, ela vivenciou a ecoteologia em sua vida. Alguém que conseguiu transformar o seu meio ambiente seja o natural com as matas, onde ajudou a desenvolver projetos de reflorestamento de matas ciliares, na preservação do cerrado e na sua utilização como fonte de renda em contraposição a toda a destruição que vem sendo feita para com o bioma cerrado; seja o das pessoas que estavam a sua volta, pois foi alguém que impulsionou todas as formas de vida a seu redor e com todo respeito que todos merecem.
     Tive a possibilidade de trabalhar com ela pelo menos 8 anos de sua vida. Nesse tempo pude observar a sua grande dedicação e responsabilidade em relação ao meio ambiente e a vida como um todo. Recordo aqui algumas ações que juntos construímos em nossa simples realidade do município de Juti, no Mato Grosso do Sul.
     As irmãs de São José de Chambery já desenvolviam um trabalho no município com os povos indígenas, mas foi com irmã Lucinda que fui conhecendo um pouco mais as aldeias e os acampamentos e assentamentos de reforma agrária. A comunidade tinha um fusca que utilizávamos para poder ir até a aldeia e os assentamentos. Mas mais de uma vez quando eu não estava para poder dirigir ela caminhou mais de 15 km para fazer suas visitas.
     Nestas visitas uma sacola e um chapéu eram seus companheiros. Na sacola algumas latas com sementes de hortaliças e/ou frutas, como melancia, melão... Com essa sacola ajudou muitas famílias a produzirem suas hortaliças e também as ensinava a preparar o espaço da horta, cercar, adubar, plantar e se preocupava também com vários outros aspectos da vida do povo.
     Por esse mesmo período também visitamos os acampamentos e assentamentos de reforma agrária. Nos acampamentos sempre estava preocupada com a situação do povo que estava nos barracos de lona e em situação de risco. Aí também contribuiu muito para a produção das hortaliças e criação de pequenos animais.
     Nos assentamentos sempre com a mesma missão e agora com ideias maiores, percebidas pela necessidade do povo. Ajudou em vários cursos de produção de sabão, de panificados, derivados do leite, da mandioca...
     O leitor deve estar se perguntando como tudo isso? Bem, nunca trabalhamos sozinhos, sempre fazendo pontes, ajudando a abrir caminhos para que o povo tivesse sua autonomia e pudesse fazer suas parcerias e também quando preciso lutar pelos seus direitos fomentando também a participação nos conselhos municipais e nas atividades regionais.
     Ações com a, recém criada, secretaria de meio ambiente e até mesmo antes dela já estávamos fomentando com o povo da cidade, pois no entorno da cidade muitos problemas de desmatamento e inclusive de destruição das nascentes, além das áreas de preservação e matas ciliares dos assentamentos e aldeias.
     Muitas outras coisas eu e irmã Lucinda realizamos juntos, ela muito mais presente que eu nas ações, pois eu tinha outras atividades e estudos nesse período. Mas gostaria de recordar alguns que para mim são importantes para nossa reflexão sobre esta campanha da fraternidade.
     Sempre procuramos motivar para uma agricultura que respeite a vida na sua diversidade, seja ela orgânica ou agroecológica. No ano de 2003 fomos para Anchieta – SC em um evento de agricultores familiares e uma das atividades era uma feira com os produtos e com sementes crioulas preservadas pelos agricultores familiares da região. Trouxemos algumas sementes e em uma reunião da CPT – Comissão Pastoral da Terra falamos do que vimos e sentimos nesses dias. O grupo reunido nos fez uma proposta de realizar uma feira em Juti.
     Compramos a ideia e em 2004, na quadra de esportes da escola municipal realizamos a nossa feira de sementes crioulas e produtos orgânicos. Bem simples, bem caseira, do jeito que conseguimos. Tivemos poucas pessoas, mas frutuosas discussões e percebemos a quantidade de coisas que tínhamos: produtos naturais do cerrado, produtos industrializados, sementes guardadas por famílias a anos e muitas outros produtos que nos motivaram a realizar outra e outra feira. A ideia foi crescendo e chegando parceiros e neste ano de 2017 a feira estará na sua 13ª edição e contará com o 6º Seminário sobre uso e conservação do Cerrado do Sul de Mato Grosso do Sul.
     Uma parceria que conseguimos, além das locais, e que ainda hoje é importante para a feira foi a UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados, através da pessoa da professora doutora Zefa Valdivina, grande companheira e grande defensora da biodiversidade. Nessa caminhada de feira, muitos outros cursos para os agricultores familiares e indígenas foram realizados. Muitas formações, muitas atividades práticas, dentro e fora dos assentamentos. Nossa feira ganhou destaque fora do Mato Grosso do Sul.
     No caminho, muitas coisas foram sendo fomentadas, hoje no município temos além da feira anual um viveiro de mudas para reflorestamento, um banco de sementes, com tudo que é necessário para conservar as sementes crioulas ou nativas. Criamos também o Instituto Cerrado Guaraní que tem por objetivo dar assessoria e fomentar projetos de preservação e atividades que caminhem nessa direção, além de conscientização ambiental dentre outras atividades.
     Dentre muitas coisas que foram acontecendo nesse belo período em que pude compartilhar minha vida com a de irmã Lucinda em favor do bioma Cerrado eu guardo para a vida a sua simplicidade e seu querer ajudar de qualquer forma os que mais precisam. Mas sua simplicidade não era ignorante, mais de uma vez a acompanhei em mesas temáticas em universidades ou reuniões na Embrapa ou outros espaços com doutores nas áreas das biológicas e humanas.
     Bem, no dia 06 de agosto de 2013 um fatídico acidente de carro levou a morte irmã Lucinda e irmã Adelaide. Eu entrei na vida religiosa franciscana e fui para outros caminhos, mas o trabalho por nós iniciado continua e isso me deixa realizado. Mas o que eu gostaria de salientar com isso é que nossa vida é moldada pelo espaço geográfico que habitamos, e é de extrema necessidade preservar nossas raízes, nossas identidades pois somos fruto do bioma que habitamos. É só prestar atenção na sua alimentação, nos seus costumes, sotaque, modo de vida.

V. CONCLUINDO
O tema e o lema da Campanha da Fraternidade deste ano são muito pertinentes para lançar um olhar mais carinhoso para com as formas de vida que nos cercam e com as formas de vida que nos formam. Refirmo que somos fruto de tudo o que vivemos e sendo assim somos frutos também dos ambientes que nos rodeiam, corroborando com o Papa Francisco que escreve na Laudato Si, número 147: “Os ambientes onde vivemos influem sobre a nossa maneira de ver a vida, sentir e agir”.
Corroboro com Padre Nicolau Bakker em seu texto: CF 2017: Uma nova concepção de vida em que ele afirma que “é o bioma que define o viver, conviver e sobreviver do ser humano” é só olharmos para o modo de vida litorâneo e o de alguém da região central do país, ou do sul, ou da região norte ou nordeste, jeitos de ser brasileiro de formas muito diferentes e moldadas pelas matérias primas disponíveis e pelas configurações geográficas, geológicas, vegetativas e históricas.
Neste mesmo texto ele diz:
Cada bioma é resultado de forças cósmicas que mudam apenas a longuíssimo prazo e que ultrapassam em muito a capacidade humana de, de alguma forma, dominá-los. [...] O bioma “gera” o ser humano [...] não apenas nas feições do corpo, mas também nas da alma.
     É no bioma que vivemos, nos relacionamos, nos formamos e morremos. O bioma é gerador de vida, proporcionador da experiência de Deus que “viu que tudo era bom” (Gn 1,31). Precisamos reaprender a ter o olhar de Deus para com a criação e poder dizer que todo o criado é bom, é importante, é transmissor da mensagem salvífica de Deus.
     De forma bem concreta este ano falaremos dos biomas conhecidos por nós: Cerrado, Mata Atlântica, Amazônia, Pampa, Pantanal e Caatinga. Mas acredito que devemos ter um olhar mais atento às suas complexidades.
Cuidar dos biomas é muito mais do que cuidar da natureza. Cuidar dos biomas é pensar na criação como um todo, é pensar de forma integradora e geradora de vida. É pensarmos ações que o ser humano produz e que tem reflexos diretos na natureza, tais como: os rejeitos sólidos e poluidores das fábricas, nos venenos das lavouras de monocultura, no desmatamento desenfreado, nas favelas que se formam em torno de morros e rios, nos esgotos a céu aberto ou nos mares ou nos rios, pensar nos autos índices de crimes, nas populações carcerárias, na violência contra as mulheres e muitas outras coisas que assolam a nossa sociedade.
    
Bibliografia
Igreja Católica. Papa [2013-.... : Francisco]. Carta Encíclica Laudato Si': do Santo Padre Francisco sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus: Loyola, 2015. 139p. (Documentos do Magistério, 7). ISBN 978-85-15-04294-4.
Bakker, Nicolau João. CF 2017: Uma nova concepção de vida fraterna pesquisado em http://portalkairos.org/cf-2017-uma-nova-concepcao-de-vida-fraterna/ 16:53 do dia 08/11/2016.



[1] Frade menor franciscano, cientista social e aluno do curso de teologia no Instituto Franciscano de Teologia em Petrópolis – Rio de Janeiro.
[2] Laudato Si número 11, página 14.