A tragédia de Paris sob um olhar franciscano
Ainda sob o forte impacto do atentado e sua repercussão mundial, o texto de Frei Vitório Mazzuco contribui para a reflexão em torno do tema. Diante de dilemas que trazem à tona a contradição humana e tudo de mais perverso que dela pode originar, olhar para Francisco de Assis é sempre um refrigério para o coração, a possibilidade de seguir por uma caminho novo de integração, diálogo e respeito.
LEIA O TEXTO:
Francisco de Assis é lembrado hoje, em tempos de Estado Islâmico, como alguém que esteve lá entre os muçulmanos. No seu tempo, Francisco viu a expansão muçulmana como uma grande desforra contra as conquistas do Império Romano tendo Alexandre Magno como grande protagonista. A cristandade medieval foi cercada pelo mundo do Islã e viu nela uma força política, militar e ameaçadora da fé. Ambos os lados usaram a força das armas para dizer que cada lado tinha o seu lado diabólico e infiel. Assegurar a paz e restituir terras virou guerra santa cujo único resultado foi um ódio secular. Nas pregações cristãs, os Cruzados não eram tratados como homicidas por matarem muçulmanos, mas sim malicidas, matavam o mal que era o “infiel”. Soldado morto em combate nas cruzadas tinha a glória no céu. Do lado islâmico a ideia era a mesma, pois os “cristãos hereges” queriam terras e destruição da religião do Profeta. A bem da verdade nenhum dos lados conseguiu enfraquecer o outro. Os dois lados saíram fortalecidos do ódio e da guerra. Como isto aconteceu? Aproximação de línguas, cultura, ritos, unificação política, ortodoxia forte, Jerusalém, Damasco, Cairo passam a ser centros referenciais importantes. Tanto cristãos como muçulmanos se apegam à Cidade Santa, na Terra Santa. Conquistar lugares é purifica-los, cada um impondo ali a sua fé. Entre vitórias e derrotas, as Cruzadas e o Islã fazem propaganda de vitórias e castigos divinos; ira divina contra povo pecador. Sempre Deus e povo levam a culpa gerada por alguns senhores da guerra. Somente uma nova vida moral, muita penitência e armas na mão podem mudar destinos dos povos. Saladino, Balduíno, Gregório VIII, Clemente III, Celestino III, Inocêncio III, sultões e reis católicos querem conquistas e respostas precisas. Para reformar é preciso libertar. Há uma certa diplomacia de cartas, negociadores, atividade política misturando soberanos, Papas, cardeais, príncipes e soldados. Toda a questão é devolver a Terra Santa. Lugar de fé torna-se elemento diabólico de guerra. Se não existe diálogo no espírito aparece a força das armas. Como os cristãos poderão ser chamados cristãos se não reivindicarem seus direitos libertando a Terra Santa das mãos dos inimigos? O outro lado pensava o mesmo.
Em meio a este turbilhão aparece Francisco de Assis. Só tem as armas da fé para combater o bom combate. Não é tarefa de mero combatente, mas tarefa profética. Todo profeta surge quando não se vê mais saída, e tem a coragem de mostrar o reverso da história. Não pode haver violência conduzida pelo nome de Deus. Ele prefere ir na paz do Evangelho, dom de Deus, vitória de Cristo com o sangue da Paixão. Quem tem o Evangelho não precisa de espada, lança ou escudo. Cruzada armada não é nenhum remédio. As pessoas se curam, se convertem e se encontram no bem. Não existe, para Francisco inimigo que não possa ser amado. Isto está no Evangelho. “Amai vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam” (Lc 6,27). Sabedoria divina é missão salvífica. Mais do que pregar ele vai amar. Não se vai ao campo contrário levando sofrimento e morte; o inimigo não tem como acreditar que possa existir uma saída. Não há nada a defender de material, mas sim conquistar uma força espiritual. Para ele tudo e todos são Irmãos, os muçulmanos também são irmãos. Você pode ser irmão e irmã quando dialoga, quando escuta e fala do conhecimento dos mistérios de Deus. Você pode ser irmão e irmã pelo exemplo e palavra, pelo Amor, pela caridade, pela doação, até pelo martírio se for preciso. Isso Francisco fez. Ele não quis espiritualizar as Cruzadas, porque sabia que não se espiritualiza uma violência, ele quis evangelizar, isto é: mostrar que é possível uma Boa Nova de justiça e paz. É por aí que temos que dialogar.
A partir de 1211, Francisco de Assis estava disposto a ir para a Síria e Marrocos, não para guerrear, mas para testemunhar. Como a dizer: “Eu creio, vocês creem, vamos conversar na maior riqueza que temos: a fé! Ter fé é transformar sentimentos!” Não foi desta vez. O IV Concílio de Latrão preparava mais uma Cruzada entre 1215 e 1216. Francisco preparava pregação de paz. Inocêncio III, que iria comandar esta Cruzada, morre em 16 de Julho de 1216, e com ele morre o que seria o estigma de um Papa à frente de um exército fortemente armado. Francisco estava no funeral do Papa e queria pedir ao sucessor Honório III a suspensão de mais esta batalha contra os muçulmanos. Não consegue a suspenção, porém em 1218, consegue autorização do Papa para ir até o acampamento dos cruzados, em Damieta, e convencer os seus chefes, o cardeal Pelagio e o Rei João de Brienne para que dialoguem com Melek-el-Kamel, o sultão, que tinha uma proposta: os cristãos se retirariam do Egito e ele devolveria Jerusalém. A bem da verdade esta Cruzada não era para conquistar Jerusalém novamente, mas para destruir o poderio militar do Islã. E lá vai São Francisco! Passa do acampamento cristão para o muçulmano e vai dialogar com Melek-el-Kamel. Quando o sultão vê aquele homem frágil, maltrapilho e desarmado até se assusta, mas percebe que ele não oferece perigo. O que ele oferece é que a violência seja substituída pela mansidão, que o ódio seja trocado pelo respeito, que o inimigo seja irmão, que morrer por amor e caridade é muito melhor que guerrear por nada.
Escreve Tomás de Celano: “No tempo em que o exército dos cristãos sitiava Damieta, o santo de Deus estava presente com seus companheiros(…) Então, ao prepararem-se os nossos para o dia da batalha, tendo ouvido isto, o santo queixou-se profundamente da guerra. E disse a seu companheiro: “Se em tal dia acontecer o embate, o Senhor me mostrou, os cristãos não se sairão bem. Mas se eu disser isto, serei julgado como louco; se eu me calar, não escapo da consciência. Portanto o que te parece?” O companheiro respondeu-lhe, dizendo: “Pai, não te importe que sejas julgado pelos homens, porque não é agora que começas a ser julgado como louco. Descarrega tua consciência e teme mais a Deus do que aos homens. Então, o santo sai e dirige aos cristãos com admoestações salutares, desaconselha a guerra, anuncia a derrota. A verdade torna-se fábula, eles endureceram o coração e não quiseram ser advertidos. Vai-se, combate-se, guerreia-se e os nossos são acuados pelos inimigos”. Ali, em Damieta, no Egito, Francisco viu o inútil mecanismo de morte, gerado por aqueles que não quiseram reconhecer em suas palavras, uma exortação vinda de Deus. Mas foi após a derrota, que no dia 31 de Agosto de 1219, que permitiram que ele fosse até o sultão. Então ele vai com coragem e fé. Até prevendo se fosse preciso o martírio, mas que fosse pelo bem de cristãos e muçulmanos. Francisco quer dialogar com o sultão. Se existe a boa vontade sempre há aproximação, presença e conversa. Mesmo assim a fé tem que ser provada. Há em Francisco de Assis e em Frei Iluminado de Rieti, os dois que chegaram ali na tenda do sultão, uma doçura, simplicidade e transparência que encanta a todos. Eles se apresentam em nome de Deus. Isto é causa de admiração, veneração e estima. Em meio à guerra alguém vem apresentar-se na paz do Senhor! Há em Francisco e em seu companheiro uma atitude de humildade e bondade que não existia nos violentos cruzados. Melek-el-Kamel, aceita o testemunho do santo, porque sabe que ele vem como portador de uma Palavra Sagrada. O sultão é líder dos Islam e tem muita consciência religiosa para perceber que pobre frade traz o fervor do Espírito, e é neste espírito que vão dialogar. Não há entre os dois nenhuma palavra de agressividade e desprezo. Não é momento de falar contra Jesus ou Maomé, ou contra a Bíblia ou contra o Corão. Não está ali, um cristão latino, que jamais seria capaz de insultar o profeta ou quem quer que seja. Francisco tem o maior respeito pelo sultão e seus comandados a partir do espírito do Evangelho. Como era tradição, aceitou o desafio do Ordálio de Fogo.
Ordálio (Mubahâla), era uma fogueira feita em público para que por entre chamas, fogo e brasas, numa prova de coragem e fé, as pessoas a atravessassem incólumes. O sultão propõe o desafio, chama seus doutores para que o façam junto com Francisco. É um testemunho público de uma fé levada ao fogo da experiência. Já havia acontecido esta cena em Medina, onde Maomé, frente a uma delegação de cristãos e seu bispo, tinham que se submeter à autoridade civil do profeta. Em Medina, discutiram sobre o significado da Paixão de Jesus Cristo e tiveram que provar a verdade da Encarnação, a Divindade de Jesus Cristo, diante do ordálio de fogo. Maomé queria que os cristãos pedissem o regresso imediato de Cristo e reconhecessem a sua missão profética. Os cristãos não aceitaram o desafio, queriam apenas negociar as ideias teológicas. Perderam a chance de fazer com que a doutrina cristã da Divindade, Paixão e Encarnação fosse mais conhecida por parte dos muçulmanos. Mas em Damieta, novamente vem a prova de fogo. Há uma nova atitude; o santo de Assis é um profeta de Deus diante do Islã. De repente, os dois lados percebem, um pelo Corão outro pelo Evangelho, que estão na mesma busca: ser capaz de testemunhar a fé pela vida e pela morte; a reparação de um sofrimento causado por tantas lutas, batalhas, saques e massacres; manifestar uma caridade que vem de um amor sagrado; as boas obras muçulmanas e a caridade cristã; não julgar, mas dialogar; reconhecer os dons do Altíssimo e fazer-se Irmãos. Fazer ou não fazer o ordálio não é fundamental, o importante é saber que tanto cristãos e muçulmanos não podem desafiar o juízo de Deus, nem duvidar da fé do diferente, mas ter a postura do sultão que diz para Francisco: “Creio que vossa fé é boa e verdadeira”.
Melek-el-Kamel viu em Francisco um dom de amor, na coragem de expor sua vida ao martírio se fosse preciso, para dialogar na força da fé. Francisco, em primeiro lugar ama os muçulmanos e a partir daí pode falar de seu Deus. Uma experiência tão forte que se transforma em Regra de vida, onde é compilado um capítulo todo a falar para os frades que quiserem partir para junto dos sarracenos (Rnb 16). Testemunhar o Evangelho na vivência de virtudes cristãs. Vivência e não violência, Não provocar litígios nem contendas, mas ser submissos a toda criatura humana por amor do Senhor. Ir para junto de um modo humilde, pobre, com muita doçura e mansidão e por fim pregar a verdade cristã! O diálogo religioso para os Franciscanos não é mais um simples dado histórico, cultural e eclesial, mas é definitivamente Forma de Vida!
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