Entrevista  - Teólogo Pe. Paulo Suess    
“Dar um rosto amazônico à Igreja significa descolonizar a Igreja. ”]


Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia.

Entre suas publicações, estão Introdução à Teologia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4a ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia - A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017) e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).




1. A importância e a preocupação com a realidade da Amazônia e dos diferentes povos que nela habitam foram destacadas no Documento de Aparecida (DAP 475). De lá para cá, o senhor avalia que a Igreja no Brasil obteve avanços nesse tema? Sim, não? Quais?

Na consciência da Igreja institucional, como a CNBB, houve um avanço, que ainda não chegou suficientemente às nossas bases paroquiais, sobretudo aquelas que não pertencem à região amazônica. Em 2003, foi criada, na CNBB, a “Comissão episcopal pastoral especial para a Amazônia”, com o objetivo de sensibilizar a sociedade brasileira em relação à Amazônia, seus habitantes e sua ecologia, suas matas e suas águas. No total, são 56 dioceses. A Comissão para a Amazônia foi responsável por encontros das pastorais sociais, do grupo Igreja e Mineração, de 15 seminários sobre a Encíclica Laudato Si. O presidente da Comissão para a Amazônia, cardeal Claudio Hummes, tem feito um trabalho missionário extraordinário de visitar praticamente todas as regiões da Amazônia.
Na ampliação do trabalho da Comissão fora do Brasil destaca-se a participação na criação da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam). A Repam foi fundada em setembro de 2014, em Brasília (DF) através das seguintes entidades: o Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Secretariado da América Latina e Caribe de Caritas (SELACC), a Confederação Latino-americana e Caribenha de Religiosos e Religiosas (CLAR). O objetivo dessa rede é abrir caminhos de diálogo e de solidariedade entre as igrejas locais na região e repensar “novos caminhos” para as relações de proximidade com as populações e com o meio ambiente. A Repam abrange os nove países que formam a Bacia Amazônica: Brasil, Bolívia, Peru, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. O trabalho da Repam tem três frentes: o mapeamento da realidade, a formação das comunidades e das lideranças, e a comunicação, que é um desafio pela grande extensão geográfica.
 
2. O senhor é parte da Comissão Preparatória no Sínodo Pan-Amazônico, certo? Como se deu a construção desse documento? Houve contribuição de cientistas, teólogos, leigas? (Só pra eu entender a construção desse texto).

A Repam foi encarregada de construir a primeira versão do Documento Preparatório, com indicações do presidente da Congregação dos Sínodos, o cardeal Baldisseri. Em seguida, a Repam pediu aos cinco especialistas, escolhidos por várias instâncias e nomeados por Claudio Hummes, para cada um elaborar, em tempo recorde, um texto com duas ou três páginas a partir de sua especialidade. Para cada autor foi previamente indicado um tema bastante amplo. Depois se elaborou uma síntese desses trabalhos, com caraterísticas de um texto homogêneo. Entre os participantes dessa elaboração havia leigos, padres, uma mulher e um indígena. Esse texto inicial foi revisto pelo Secretariado do Sínodo, de Roma, que o reestruturou, sem grandes intervenções de conteúdo. Depois foi apresentado à Comissão Pré-Sinodal, que o discutiu, na presença do papa, e que teve toda possibilidade de interferir e propor mudanças.

3. O Sínodo quer buscar caminhos e dar um rosto amazônico à Igreja. Que caminhos são estes? Qual deve ser o rosto de uma Igreja Amazônica?

Quando o papa propõe, no subtítulo que ele escolheu para o Sínodo da Amazônia, “novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, deve ser porque os antigos caminhos não deram certo. Não deram certo por causa das distâncias e por causa da diversidade. Em muitas comunidades se celebra uma ou duas vezes por ano a Eucaristia e o rosto dessas celebrações é muito mais romano do que amazônico. Dar um rosto amazônico à Igreja significa descolonizar a Igreja.

4. Quais as consequências práticas que este Sínodo pode trazer à realidade pastoral, litúrgica e clerical das comunidades?

No Documento Preparatório foi descrita a realidade e os leitores foram convidados para responder um questionário apresentando propostas concretas. Nós os redatores do documento não queríamos antecipar com propostas. Porque a missão do Sínodo é escutar os povos da região. Em Puerto Maldonado/Peru (19.01.2018), o papa solicitou aos povos indígenas: “Ajudai os vossos bispos, ajudai os vossos missionários e as vossas missionárias a fazerem-se um só convosco e assim, dialogando com todos, podeis plasmar uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena”. Não queremos nos antecipar com propostas concretas às respostas dos povos da região.

5. O Vade Mecum fala que a Igreja precisa assumir transformações com espírito profético para o bem do povo de Deus? Que transformações seriam essas?

Não vamos nos conformar com as ameaças de vida aos povos amazônicos nem com a destruição de seu meio-ambiente, que é sua fonte de vida. Novamente vamos ouvir a voz do Papa Francisco, em Puerto Maldonado: “Provavelmente, nunca os povos originários amazônicos estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora. A Amazônia é uma terra disputada em várias frentes, [...] de grandes interesses econômicos cuja avidez se centra no petróleo, gás, madeira, ouro e monoculturas agroindustriais”. Nossa solidariedade, nossa denúncia profética e nosso anúncio evangélico fazem parte do nosso ser cristão e da nossa “conversão pastoral” (EG 27, 32), que é uma “conversão permanente” (DAp 382). O Capítulo I, da EG, é integralmente dedicado “à transformação missionária da Igreja” (EG 20-49.

6. Quais são as características de uma Igreja em saída? A Igreja católica brasileira é hoje uma Igreja em saída, como pede a Exortação Apostólica Evangelli Gaudium?

A “Igreja em saída” (EG 20ss) é uma Igreja missionária, que tem suas portas abertas para o outro e os pobres entrarem e para “sair da própria comodidade” para “as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). A Igreja em saída é um horizonte, uma dinâmica de caminhar e semear “sempre mais além” (EG 21). Quanto mais nos aproximamos ao horizonte mais ele se afasta. Para ser uma Igreja em saída, precisamos crescer em simplicidade, proximidade, despojamento e transparência até alcançar a “sobriedade feliz” (LS 224). A saída, o Êxodo, é um convite permanente da vida cristã. A Igreja católica brasileira é constituída por setores que são Igreja em saída e por setores que são Igreja mais preocupada com seus próprios problemas. Precisamos todos aprender que a solução dos problemas internos só encontramos “em saída”.

7. O Documento Preparatório do Sínodo fala em reforma das estruturas da Igreja. Que reformas seriam essas e para que? Para alcançar a quem?

Na reforma das estruturas da Igreja não se trata de comprar carros mais sofisticados ou helicópteros, mas reestruturar a Igreja para garantir uma presença permanente dos ministros e das ministras, ordenadas ou não, nas comunidades. O que me parece necessário é presença nas comunidades e não só visitas. É preciso “saber gastar tempo” com as comunidades e encarnar-se na vida delas. Isso exige descentralizar a pastoral em função das grandes distâncias geográficas e pastorais da região.

8. O déficit de padres na região Amazônica já é constatado. A admissão de padres via viri probati seria capaz de sanar esse déficit? Se não, quais seriam as outras formas? O senhor citou em outras entrevistas a uxores probatae... poderia falar sobre ela?

Precisamos voltar à simplicidade das origens. É bom lembrar o trabalho missionário de São Paulo. Ele ficou alguns meses nas comunidades, ensinou a palavra de Deus e criou estruturas ministeriais até o dia de partida para outra comunidade. Nunca deixou uma comunidade, sem autorizar um membro dessa comunidade para celebrar a Eucaristia. A exemplo de Jesus, na época, geralmente, os escolhidos foram homens, porque se tratou de uma cultura patriarcal. Numa cultura matriarcal, com certeza teria deixado mulheres como ministras da Eucaristia. Quem leva hoje, na ausência de padres, o trabalho pastoral adiante são as mulheres. O Sínodo pode e deve voltar à prática de São Paulo e decidir que, por motivos pastorais, homens provados, na pastoral de uma comunidade, podem ser celebrantes da Eucaristia. Infelizmente, por causa da unidade da Igreja, vai ser difícil, neste momento, discutir o sacerdócio das mulheres. Na perspectiva de certa gradualidade das soluções, o que se poderia discutir hoje, seria o diaconato feminino.

9. Uma das propostas deste Sínodo, ao me parece, é de buscar que a Igreja seja também – ou continue – sendo aquela que denuncia as injustiças a que os mais pobres estão submetidos. Está certo? Podemos admitir que há “setores” da Igreja não comprometidos com os mais pobres e vulneráveis?

O fato que a “opção pelos pobres” sempre presente em documentos ou discursos eclesiais mostra, que há “setores” da Igreja não comprometidos com os mais pobres e vulneráveis. Quem foi realmente radical com a opção pelos pobres foi São Francisco. Nós, da classe média na Igreja, e, às vezes os próprios pobres - os ricos nem comento -, somos todos devedores diante dessa opção. A Igreja sempre se autodenomina como Igreja santa e pecadora.

10. Pensando nos povos que vivem na Amazônia... são muitos os conflitos de terra, o Cimi e a CPT denunciam diuturnamente essa realidade. Esse trabalho é exclusivo a essas entidades? Deveria a Igreja ser mais ativa nessa denúncia?

As Igrejas na Amazônia estão bastante comprometidas e solidárias nesses conflitos. É um trabalho de todos os cristãos, e não pode ser “terceirizado”. O Cimi e a CPT têm a missão de alertar para os conflitos, conscientizar a sociedade, defender os povos originários e repercutir a sua voz diante dos tronos e altares.

11. Pensando nos indígenas... há uma onda de criminalização dos povos indígenas que fazem suas autodeterminações de terra. Como o senhor avalia essa realidade?

A demarcação das terras indígenas é um compromisso que o Estado brasileiro assumiu em sua Constituição Federal de 1988. Os povos indígenas cobram do Estado apenas seu direito. Aliás, na demarcação dos territórios indígenas trata-se de uma devolução de terras indígenas aos seus primeiros proprietários. Os povos indígenas querem apenas terra necessária para viver, não para vender ou fazer negócios.

12. Como se dá ou deve ser o trabalho de evangelização junto aos indígenas? Ainda há a conversão como objetivo? O Sínodo buscará respostas para isso?

Precisa-se levar em conta a situação histórica em que as respectivas comunidades vivem. Umas são católicas, há séculos, e querem viver sua religião católica. Outros são evangélicas e querem viver sua crença evangélica. Ainda outras vivem a sua religião original e querem viver sua religião original. Nós não temos o direito de fazer proselitismo, de menosprezar a religião do outro ou de aliciar para “conversões”. A religião melhor para este momento histórico, os próprios povos devem resolver. A autodeterminação religiosa, é claro, vale também nas aldeias indígenas. O Vaticano II, na sua Declaração Nostra Aetate, sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs, deixou isso claro.

13. O senhor fala em seu artigo “Sínodo para a Amazônia e o Mundo Vade Mecum para uma agenda Mínima”, de uma busca da descolonialidade teológico-pastoral... poderia explicar?

O Sínodo para Amazônia pode ser interpretado como virada descolonial. O que contribui para a “razão colonial” na Igreja e na sociedade? Se agora falamos de um “rosto amazônico” e um “rosto indígena” da Igreja admitimos, que até agora obrigamos essa região a ter um outro rosto, um rosto romano ou europeu. Colocamos, em nosso trabalho missionário, muitas vezes, uma máscara no rosto do outro. Consideramos a missão como um braço da civilização. Hoje compreendemos melhor que a Igreja, como se inculturou, quer dizer, como assumiu a cultura da Palestina ou da Grécia, assim deve também assumir as culturas dos povos indígenas. O Documento de Puebla nos esclareceu: “O que não é assumido, não é redimido” (DP 400). No labor missionário precisamos aprender trabalhar com o culturalmente disponível, e não importar nem impor outra cultura.

14. Qual a diferença de Pastoral Indígena e pastoral Indigenista?

A Pastoral indígena é a pastoral na qual os próprios índios são os agentes pastorais, enquanto a pastoral indigenista é a pastoral indígena feita por agentes não indígenas.

15. A exploração de recursos naturais na Amazônia e os impactos disso alteram os modos de vida e o bem viver de diferentes povos: ribeirinhos, pescadores, quilombolas, indígenas... As conclusões e avaliações do Sínodo, neste sentido, podem ou devem impactar de alguma maneira o modelo neoliberal imposto pelos governos no mundo? Há alguma “ambição” do Sínodo neste sentido?

É claro que a exploração de recursos naturais representa uma intervenção grave na vida da Amazônia. Em Puerto Maldonado o papa nos exortou: “Devemos romper com o paradigma histórico que considera a Amazônia como uma despensa inesgotável dos Estados, sem ter em conta os seus habitantes”. E Francisco recomenda “que os próprios povos originários e as comunidades sejam os guardiões das florestas”. O Sínodo vai despertar para uma “ecologia integral”, como o papa desenvolveu em sua “Encíclica Laudato Si – Sobre o cuidado da casa comum”. O Sínodo não ambiciona destruir o modelo neoliberal. Este modelo vai se autodestruir, quando se esgotarem as fontes de lucro, geradas por territórios incorporados no sistema, novas tecnologias e a aceleração do modo de produção.

16. O Papa Francisco sempre nos convoca a uma conversão ecológica. O que seria isso?

Ao escrever “Sobre o cuidado da casa comum”, o Papa Francisco nos convida na LS a refletir sobre o “cuidado da criação, cada um a partir da sua cultura, experiência, iniciativas e capacidades” (LS 14). A natureza, como criação de Deus, é um dom, que devemos cuidar bem. Mas muitos cristãos “se burlam das preocupações pelo meio ambiente. Outros são passivos, não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se incoerentes. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica” (LS 217). O zelo pela criação “não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa” (LS 217). A “conversão ecológica faz parte da “conversão integral” de cada um de nós (cf. LS 218).

Fonte Revista O Mensageiro de Santo Antônio - edição de janeiro/fevereiro                      Jornalista Karla Maria