Já me perguntaram mais do que uma vez: existe um método de oração ou meditação franciscana? O jeito franciscano não é de método, mas é mais viver em estado de oração e meditação. Menos técnica e mais vivência. Celano dizia que Francisco era um homem feito oração; e o modo como ele interage com todos os seres, o faz um natural meditativo sem método. Não encontramos nas Fontes um esquema tradicional explicitamente formulado. No cristianismo temos uma bela tradição como a meditação inaciana, o modo beneditino; ou então, meditação cristã que usa o modo oriental. Francisco é do século XIII e os métodos de meditação se fixaram no Ocidente a partir do século XV. O que escrevo aqui parte também de uma conversa com o saudoso Frei Alberto Beckhauser, OFM, com quem andei dialogando sobre isto.
Francisco de Assis, com sua personalidade individual plena de liberdade e uma consequente aversão a esquemas rígidos a serem aplicados a todos, não tem explicitamente uma meditação organizada e isto flui para a sua família franciscana. Mas se quisermos entender um caminho, um método, num sentido mais amplo, como modalidade, estilo ou atitude da alma que se empenha no “tu a Tu com Deus”, o que constitui uma meditação orante, podemos sim extrair, a partir da experiência de Francisco e seus seguidores, um exemplo e um ensinamento. Não existe um método franciscano de meditar ou orar, mas existe, sim, uma meditação orante que podemos qualificar como franciscana, pois a alma de Francisco não encontra obstáculos como a preocupação de exercício estudado e treinado.
Francisco de Assis não prescreveu aos seus discípulos formas e métodos de meditação e oração. Fez a sua experiência e deixou a seus frades a mais ampla liberdade, a fim de que cada um, exercendo suas faculdades pessoais, procurasse entender as inspirações do Senhor. Frei Alberto fala de um “cavalheirismo seráfico”, isto é, partir para a aventura de descobrir a bondade de Deus e o espetáculo de seu Amor em tudo o que existe. E para isto existe os caminhos da fraternidade conventual à fraternidade cósmica. Uma das paixões de Francisco era esconder-se sozinho nos bosques, frestas e grutas, separado de tudo e todos e ali entregar-se às reflexões sobre Deus e suas qualidades, sobretudo onde Ele é Belo e Bom. Ao conhecer o Criador conhecia-se cada vez mais como Criatura. Fazia um encontro entre Verdade e Realidade que vazava em preces breves como esta: “Senhor, quem sois vós e quem sou eu? Vós, o Altíssimo Senhor do céu e da terra; e eu um miserável vermezinho vosso ínfimo servo!” Ou aquela prece de atravessar noite: “Meus Deus e meu tudo!”
Este seu jeito de ser Fraternidade fazia uma imersão na Fraternidade Divina, a Trindade Santa, e exclamava com o coração incontido: “Ó quão glorioso e santo e grande é ter no céu um Pai! Ó quão santo e belo e deleitável é ter no céu um Esposo. Ó quão santo, dileto, aprazível e humilde, tranquilizante e doce e amorável e sobre todas as coisas desejável é ter semelhante Irmão, que deu a vida pelas suas ovelhas!” (Carta aos Fiéis, 54-56). Diz Frei Constantino Koser, OFM: “A riqueza infinita de Deus Uno e Trino, do Mistério Inefável, fundamento da vida espiritual franciscana, se refrata de modos incontáveis na retina finita da inteligência e da vontade criada. Aspectos mil há em Deus, cada qual mais amável, cada qual mais digno de consideração, cada qual por si só suficiente para a plenitude da felicidade extática pelas eternidades sem fim. A mentalidade de cada qual se espelhará nos atributos a que der preferência em suas meditações e preces. São Francisco deu preferência aos atributos que, em conjunto, manifestavam Deus como um Soberano de cavaleiros:  a grandeza, a glória, a sublimidade, a delicadeza na suavidade, modos corteses e finos, a justiça, a misericórdia, mas, mais que tudo, a bondade “  (Koser, Constantino, O Pensamento Franciscano, 15-16).
Assim meditando, contemplando, orando e saboreando, Francisco de Assis mais e mais submergia em Deus e acabava sentindo-se assoberbado pela majestade divina e ao mesmo tempo sublime, terrível, suave e delicada. E quando em seus arroubos se sentia irremediavelmente perdido, mergulhava na consideração da bondade divina, degustando a palavra em todas as formas: “Onipotente, santíssimo, altíssimo e sumo Deus, todo o bem e sumo bem, toda graça, toda glória, toda honra, toda a bênção e todos os bens vos tributamos para sempre”


Para meditar com Francisco de Assis é preciso mergulhar sem cessar e demorar-se bastante neste atributo divino: Deus é bom! E aqui voltamos novamente a Frei Constantino Koser, OFM: “Três letras apenas, mas que envolvem em si e evocam para Francisco toda a imensidade de mistérios sublimes e suaves, o seu Deus. O mais indefinível de todos os termos, o mais pleno de conteúdo, o de maior alcance, o mais divino, o mais semelhante ao próprio Deus Uno e Trino: Deus é bom. “Só Deus é bom” (Lc 18,19). “Deus caritas est”” (1Jo 4,16) (O Pensamento Franciscano, p.16).

“O Deus Uno e Trino no princípio parece um deserto, não porque o seja, mas porque a alma é incapaz de entender e de o amar. Aos poucos, à medida que o cavalheirismo, amparado e sobrenaturalizado pela graça divina, invadir o que parece deserto, ver-se-ão as flores, os encantos, a doçura, ver-se-á Deus Pai, Filho e Espírito Santo a abraçar divinamente suas criaturas, assemelhando-as mais e mais a Si mesmo em suavidade e bondade indizível. O conhecimento de Deus não dará trégua ao amor de Deus, e o amor de Deus não dará trégua ao conhecimento de Deus, estimulando a inteligência na busca do conhecimento cada vez mais profundo. Na medida em que aprofunda o conhecimento amoroso de Deus, nesta medida se conquista para Deus. Mas para que seja franciscano o modo de conhecer a Deus, é preciso que de fato o amor seja o incentivo da inteligência, o motivo e o estímulo de todas as horas e de todos os esforços” (O Pensamento Franciscano, p. 17).
Ao meditar o amor de Deus desafiava o amor: exigia insistentemente a resposta do amor. Sublime vocação das criaturas, de poderem amar a Deus. Privilégio excelso dos cavaleiros de Deus, de o poderem amar tão singularmente. Neste sentido, Francisco de Assis deu exemplo nas formas mais acabadas, mais completas, mais ardentes e mais sublimes. Clamava amargurado e feliz ao mesmo tempo pelo desejo desta felicidade do Amor: “É preciso amar muito a o Amor daquele que muito nos amou” (2Cel 196). Esta atitude radical de resposta de amor ao amor, ele expressou na Regra Não Bulada, capítulo 23: “Amemos todos de todo coração, de toda mente, e fortaleza, e com toda a inteligência, com todas as forças, com topo empenho, com todo afeto, do íntimo da alma, com todo o desejo e vontade ao Senhor Deus. Criou-nos e nos remiu, salvou-nos em pura misericórdia, cumulou-nos a nós (...) ingratos e tolos e maus, com todos os bens, e continua a cumular-nos. Nada pois, desejemos, nada queiramos, nada nos agrade ou alegre, a não ser o Criador, Redentor e Salvador nosso, o Deus único e verdadeiro que é o bem todo e verdadeiro, o supremo bem, o único bem.  É misericordioso e meigo e doce; Ele só é santo, justo, verdadeiro e reto; Ele só é benigno, inocente e casto; Ele de quem e por quem e em quem está todo perdão, toda graça, toda glória, de todos os penitentes e justos, de todos os santos que no céu conjuntamente se alegram. Quem nos dera que nós todos, em toda parte, em toda hora e em todos os tempos, todos os dias e continuamente creiamos, louvemos, bendigamos, glorifiquemos e sobreexaltemos; engrandeçamos e rendamos graças ao Deus Altíssimo e Supremo e Eterno, à Trindade e Unidade, ao Pai e ao Filho, ao Espírito Santo, ao Criador de todos. Para todos os que nele creem e nele esperam e o amam, é Ele sem princípio e sem fim, imutável, invisível, inenarrável, inefável, incompreensível, ininvestigável, bendito, louvável, glorioso, sobreexaltado, sublime e excelso, suave, amável, deleitoso e todo desejável mais que todas as coisas por todos os séculos sem fim. Amém”. A meditação e oração em Francisco de Assis são palavras que jorram abundantemente do manancial de sua alma.



Na Criação. Francisco de Assis gostava de meditar e orar a grandeza do amor de Deus que se manifesta na Criação, um espetáculo de beleza e bondade, de graça e magnitude de tudo o que forma o universo dos seres que a povoam e que revelam, umas e outras, o poder e a sabedoria do Criador. Todas as criaturas arrancam da alma de Francisco de Assis aquele Cântico de louvor às Criaturas, mas é ao Altíssimo que ele dirige suas palavras. É um Cântico completo de louvor e glória, de honra e bênção ao conjunto de todas as criaturas que revelam em suas qualidades as qualidades de Deus. É o Cântico da Irmandade de todos os seres, grandes ou pequenos, os irracionais e os racionais, todos na mesma origem.
Francisco de Assis medita o Deus Pai que tirou todos os seres do nada e os conserva em seu Ser a cada momento. E todos são companheiros no mesmo destino de louvar a Deus. As irracionais, pelo seu modo harmonioso e belo, seguem a ordem estabelecida. As criaturas racionais, como o ser humano, devem tomar consciência desta ordem e abraçá-la com liberdade e amor. Francisco de Assis sente isto como a sua grande missão durante toda vida, aqui no mundo e em toda a eternidade. Ele quer ser um alegre trovador que medita e canta e quer que todos sejam trovadores de Deus, de um modo amoroso e alegre, este é o modo de vida franciscana.

No Filho de Deus. O centro do amor de Deus se manifesta em seu Filho, Jesus Cristo. Francisco de Assis se encanta com o Filho de Deus, humano, um de nós, irmão, pobre, servo de todos. Por isso a convergência da meditação franciscana é a Encarnação. Tudo o que manifesta este Amor de Deus por nós, através de seu Filho, é objeto da sua contemplação, meditação e oração. É seu entusiasmo seráfico, é a sua resposta de amor. Onde isto se torna ainda mais evidente?

No Presépio. É aí que Francisco de Assis reinventa a cena do Evangelho e a representa ao vivo em Greccio. O Presépio é a meditação da Encarnação; é imitado até os dias de hoje pela piedade cristã.

Na Cruz. Desde o início de seu processo de conversão a Cruz era o que mais comovia Francisco de Assis. Chorava a paixão pelas trilhas dos bosques. (LTC 15). Compõe o Ofício da Paixão para rezar todos os dias como especial sinal de reverência e compaixão pelos sofrimentos do Filho de Deus. A sua conhecida prece nos recorda esta verdade: “Absorvei, Senhor, eu vos suplico em meu espírito, e pela suave e ardente força de vosso amor, desafeiçoai-me de todas as coisas que debaixo do céu existem, a fim de que eu possa morrer por vosso amor, ó Deus, que por meu amor vos dignastes morrer”.

Na Eucaristia. Um amor perpetuado feito alimento sagrado. Na carta escrita a todos os Irmãos e Irmãs, Francisco revela uma visão cósmica dos mistérios da redenção presente na Eucaristia. Implora aos Irmãos e Irmãs, beijando os pés, que prestem total reverência e toda honra ao Santíssimo Corpo e Sangue do Senhor.
Na Fraternidade. O Filho de Deus se fez irmão e servo. A Fraternidade refaz os vestígios de Jesus Cristo de modo radical: ser Irmão e Irmã, Menores, simples e pobres, por Amor e a serviço de tudo e de todos. Fazer o bem a alguém é fazer a Cristo. Ele via o Rei dos reis em cada irmão e irmã, por mais mínimos que eles fossem: pobres, leprosos e enfermos.

Na Sagrada Escritura.
 Para Francisco de Assis, a Palavra de Deus é fonte de meditação e oração. Fazia paráfrases de trechos da Sagrada Escritura e tinha grande amor pelos teólogos que explicavam a Sagrada Escritura com Espírito e Vida.

Na Igreja. Ele ama incondicionalmente a Mãe Igreja. Por ela se faz homem católico e apostólico. Respeita os que formam a Eclesiologia, contemplando neles a vontade do Senhor. Leva para dentro da Igreja a mensagem vital e revigorante da Boa Nova.

Em Maria. A Virgem feita Igreja. Rainha da Ordem, do céu e da terra, pobre e despojada como seu Filho.

Na morte. Ela é a irmã que abre a porta para a plena harmonia. Ela é a bem-aventurança da alegria pela conquista da vida eterna, ela é o acorde final de uma grande sinfonia de amor.




FRANCISCO DE ASSIS: MEDITAÇÃO E ORAÇÃO – FINAL


Tudo o que lembra a bondade de Deus leva Francisco de Assis à contemplação e à ação. Por isso, Francisco não tem lugar nem método fixo de oração, mas sim uma livre expressão em diversas formas. Vamos comentar brevemente algumas:

Retiro Franciscano: O retiro franciscano é a experiência eremítica. Recolher-se para colher. Ir para um lugar afastado, ficar um tempo e de lá sair. Sair dos rumores do tempo para meditar os atributos de Deus. No Carceri, no Monte Alverne, Fonte Colombo, ali nestes lugares encontrava espaço e tempo para silêncio e prece. O eremo não é lugar para ficar, mas sim para sair em direção a todos para anunciar as maravilhas encontradas ali.

Leitura e Meditação da Sagrada Escritura: Francisco de Assis fez da Palavra um grande Amor em sua vida. Traduziu literalmente a Palavra em sua vida. A seguia sine glosa, isto é, sem alteração. Ler, encarnar, viver a Palavra de um modo puro, concreto e simples.

Paixão de Cristo: Foi o seu mais rico livro de meditação pessoal. Onde o Amor de Deus é capaz de chegar! Descobrir este Amor, responder ao Amor e reconstruir-se a partir deste Amor.

Natureza:  Outro vasto texto de meditação de Francisco. Imagem nos olhos, Palavra nos lábios. Olhar e contemplar. Ver a grandeza de Deus nos detalhes de minerais, vegetais, animais, tudo na mais perfeita irmandade. Criaturas do mesmo Pai, vestígios da Beleza de Deus. Meditar passando pelo filtro da natureza e aí louvar, agradecer, extasiar, admirar. No coração fazer pulsar o Cântico das Criaturas.
Fraternidade: Expressão de nosso Pai comum. Lugar de Irmãos e Irmãs. Lugar de restaurar a vida com o jeito de Jesus. Servir o semelhante, alegrar-se com ele, confraternizar-se com ele.

Trabalho: Também é oração e meditação. Diz Francisco de Assis: “ Os irmãos, aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem com fidelidade e devoção, de maneira que afugente o ócio, inimigo da alma; e não percam o espírito de oração e piedade, ao qual devem servir todas as coisas temporais”. (Rb 5).
Horas de Quarto: Para Francisco de Assis, a cela, ou o quarto não é de madeira, pedra ou tijolo, mas de carne e osso; e não se acha incrustada num convento, mas acompanha ocupante para onde quer que vá. Diz o Espelho da Perfeição: “É o nosso corpo a nossa cela, e a nossa alma se encerra nele como um eremita em seu cubículo para quietamente meditar e orar a Deus”.

Esta é meditação franciscana, que se faz de maneira espontânea no retiro, na natureza, na convivência fraterna, no trabalho, onde podemos e devemos encontrar a paz e a alegria. Paz de consciência, paz da ação de graças, paz da realização de participar do grande Amor de Deus, de ser irmão e irmã de toda humana criatura e de todos os seres.

FREI VITÓRIO MAZZUCO